domingo, 21 de junho de 2015

Oh Meu Deus 2015 - Ultra Trail Serra da Estrela - A lição!

No sábado dia 30 de Maio eu e o Xico seguimos rumo a cidade da Covilhã para iniciar o tão esperado estágio em altitude. Na segunda íamos encontrar-nos com o Luzio para nos instalarmos nas Penhas da Saúde a cerca de 1500 metros de altitude. Ai iriamos ficar até sexta dia da partida das distancias das 100 milhas e dos 100 Km que iria acontecer em Seia.

Foi uma semana em cheio: treinos suaves, caminhadas, descanso e boa disposição. Poderíamos dizer que os 2 Serranitos e este projecto de Serranita estavam com bom ar.


                                 


O Xico e o Luzio iam fazer a prova dos 100 Km e podia-se perceber algum nervosismo da parte deles pese embora eles dissessem que não.

Eu por outro lado não me sentia nada nervosa. Estava sim ansiosa para que o dia chegasse. Sentia-me preparada quer física quer mentalmente. Este ultimo ano foi forte em termos de preparação. Muitos treinos e provas longas para me preparar para o tão esperado dia. Só queria começar e aproveitar.

Seguimos para Seia na sexta-feira depois de almoço. Ainda queríamos ir ver a partida das 100 milhas e dar incentivo a alguns amigos que se preparavam para iniciar esta aventura.

Chegados a zona da Câmara Municipal onde estava instalado o "quartel general" do Oh Meu Deus fomos levantar os dorsais. Comecei logo a sentir a adrenalina da festa. Só de ver os super atletas a prepararem-se para a partida já estava com vontade de me ir vestir e começar logo. E pensar que ainda tinha de esperar pelo dia seguinte para iniciar a minha prova

Cá está o vídeo da partida das 100 milhas.



De regresso ao hotel o Xico queria dormir um pouco e eu não tinha sono nenhum. Fiquei entretida a tentar pôr a funcionar a Action Cam que tinha comprado para filmar alguns momentos da prova. Por volta das 20h fomos jantar e depois dão-se inicio os preparativos para a partida da prova dos 100Km que iria começar as 23:59h. No meio dessa azafama comecei a ficar com alguma ansiedade. Afinal o Xico e o Luzio iriam partir não tarda e iriam fazer cerca de 6h de noite pela Serra. Não é que eu tivesse medo, mas os nossos frontais (todos iguais) comprados online e vindos de um pais que inspira pouca confiança para estes gadgets causavam-me um certo desconforto. Bem, há que pensar positivo e torcer para que tudo corra bem.

Saímos do hotel rumo a zona da partida. Eles entregaram os sacos para os postos de troca de roupa e fizeram o controlo zero. Eu e a Cláudia, que já se tinha juntado a nós, ficamos de fora a assistir aquelas movimentações. Dá-se inicio ao briefing e dentro em breve será a partida. Beijinhos e votos de boa sorte e ai vão eles rumo ao desconhecido.

E eu a continuar sem sono… De regresso ao quarto tento dormir mas nada. Só pensava se aquelas duas alminhas estavam bem. Resolvi ligar o computador para ver o acompanhamento online da prova na passagem dos postos de controle/abastecimento. Achei estranho serem quase 2h da manhã e ainda não aparecer a passagem no primeiro posto no Sabugueiro. Tinha feito com o Xico uma estimativa de passagem nos postos de abastecimento da minha prova e tínhamos definido que deveria demorar no máximo 2 horas a chegar ao Sabugueiro. Se eu demoraria 2h no pior cenário como é que eles ainda não tinham passado??? Mas depois percebi que nem eles nem ninguém aparecia. Só então me lembrei da informação que a organização deu a noite. Tinha caído um temporal de granizo que tinha afectado as comunicações em algumas zonas da Serra. Ok. Pode ser que seja isso. Quando ia desligar o PC começaram a aparecer os tempos de passagem. E eis que o Xico e o Luzio apareciam no grupo dos 1ºs… Ohhh Meuuu Deuuussss estes rapazes vão doidos. Espero que não rebentem… Aiii vou deitar-me e logo vejo quando acordar onde é que eles estão. Acordei as 4h30. Decidi não ir ver. Não consegui dormir mais. Fui tomar banho e preparar a traquitana. Desci para tomar o pequeno almoço na companhia da Cláudia. As duas agarradas ao telemóvel para tentar perceber onde é que aqueles doidos andavam. Vale Glaciar… Outra vez a aparecer nos primeiros. Aiii que caneco… Mandei sms ao Xico a perguntar onde estava e ele diz-me: “ A chegar a Unhais, 1º”… Again!!!??!!! Bem a coisa deve estar-lhes a correr bem. Fixe. Vou esquecer a prova deles e preocupar-me com a minha.

Tralha as costas e aqui vou eu. Digo tralha as costas porque tive de levar TUDO comigo. Não há cá sacos para deixar em abastecimentos. Na prova dos 70K vai tudo as costas. A minha mochila pesava cerca de 6/7 Kg já a contar com a agua. Nada de mais...

Na partida alguns amigos que iam também participar nesta aventura, o JP e o Jorge. Damos força uns aos outros. Breves palavras de força com a amiga Cláudia. Foto para a posteridade. Briefing dado e sigaaaaaa!!! Aqui vamos nós.



Começamos logo a subir e muito até ao Sabugueiro. Passamos pela Povoa Velha, aldeia onde o ano passado havia um abastecimento. Este ano não havia abastecimento previsto para esta aldeia mas… eis senão quando ao virar da esquina e depois desta foto tirada pelos Bombeiros de Seia vejo um abastecimento popular feito por emigrantes residentes em França. Soube-me a pato!! Melancia, melão, agua fresca, coca-cola.. Nhammy.




Ia a bom ritmo e estava dentro do tempo previsto para chegar ao Sabugueiro. E assim foi. Nesse abastecimento atestei com agua, bebi mais coca-cola comi mais uma frutinha e algumas batatas fritas e amendoins e já está. Vamos lá embora rumo ao Vale do Rossim.

Pouco depois de sair do Sabugueiro numa subida vejo ao longe um rapaz sentado numa pedra. Como vejo mal e não consigo correr com óculos pareceu-me um bombeiro porque tinha uma camisola vermelha. Quando cheguei perto percebi que era um companheiro de corrida que estava a descansar. Perguntei se estava tudo bem ao que ele respondeu que estava só a recuperar e a comer qualquer coisa porque estava a sentir-se um pouco fraco. Aproveitei a companhia e seguimos os 2. A chegar ao Vale do Rossim o terreno começou a descer com um estradões bons e comecei a rolar. O meu colega acabou por dizer para eu seguir. Assim fiz e lá cheguei ao Vale do Rossim dentro do tempo estimado no meu plano de prova. Estava ansiosa por comer qualquer coisa de consistente, sem ser fruta ou batatas fritas e coca-cola. As minhas barrinhas já tinham todas derretido nesta altura mas sabia que ia haver sopa e tostas mistas nesse abastecimento e estava a salivar. Quando cheguei ao abastecimento procurei a panela da sopa com o olhar mas nada... Disseram-me que como estava muito calor e a sopa já lá estava desde a noite tinha azedado e as tostas mistas já tinham acabado a muito. Não acredito. Enche com mais coca-cola, fruta e batatas fritas. A partir daqui sabia que ia ser muito complicado o terreno até a Torre. Já tinha feito em Setembro do ano passado o percurso do Vale do Rossim até a Nave da Mestra e sabia que havia muita pedra e a progressão seria difícil. Também estava muito calor e ia ser necessária muita energia. Fiquei preocupada por não ter comido nada de jeito por isso resolvi tomar um gel que seria a sobremesa do almoço "farto" que tinha tido. Optei também aqui por tirar a tshirt e seguir de top para ir mais fresca. Pus protector solar factor 50 porque na serra não se brinca. O meu colega de prova Paulo tinha também chegado ao abastecimento mas entretanto como já estava despachada acabei por seguir. Depois de sair do Vale e como tinha agua fresca decidi preparar electrólitos. Para mim mais importantes que o do açúcar é o sal. Bebi um pouco e segui. Distrai-me enquanto preparava os electrólitos e enfiei-me por um monte de silvas onde mal me conseguia mexer. Apercebi-me que o caminho não seria por ali. Perdi algum tempo e quando voltei atrás voltei a encontrar o Paulo e a partir dai fomos sempre os dois a dar apoio moral um ao outro.

Após entrar no trilho para a Torre comecei a ficar impaciente porque nunca mais chegávamos a Nave da Mestra e eu tinha ideia que fosse mais perto. É claro que o trilho que seguíamos podia ser outro mas pensei que estaria já ali ao virar do próximo pedregulho. Mas não... Isso não acontecia...Demoramos uma eternidade a chegar lá. Ai havia um controlo surpresa da organização onde estavam 2 rapazes que estiveram la a acampar de noite e tinham alguma água fresca para abastecer. Volto a preparar electrólitos para ir bebendo até a Torre.



Lá seguimos. Só conseguia pensar em chegar a Torre mas ainda faltava um bocadinho. Estávamos a demorar bastante tempo a fazer 1 Km. Pelas minhas contas faltavam 10 Km para a torre. E a fome cada vez a apertar mais e as forças a começaram a fugir. Acho que neste momento até tive visões. Algumas pedras pareciam-me comida.

Finalmente lá chegamos as Lagoas das Salgadeiras e percebi que estávamos quase a chegar.


Mas quanto mais andávamos mais parecia que nos estávamos a afastar. Ao fim de mais algum tempo lá avistamos a estrada e finalmente a Torre. O abastecimento seria na torre da GNR. Quando entro encontro um cenário não muito agradável. O posto de abastecimento estava quente e húmido com um cheiro pouco agradável. E percebe-se o porque. Vários atletas estavam completamente acabados deitados nos sofás. Uns a dormir outros com caras de enjoados. Encontro uma cara conhecida, o atleta Bruno Bondoso que o ano passado ficou em 1º lugar na prova de 100 Km. Perguntei-lhe o que estava ali a fazer ao que me respondeu que tinha desistido. Estava a correr a prova dos 160 Km e teve de abandonar devido a fadiga e desidratação. Com este cenário que vos conto e ao ver tanta gente a desistir na torre fico a pensar se também não deveria ficar ali. Decidi que não. Já tinha chegado até ali não ia desistir agora. Achei que deveria tentar comer alguma coisa mas estava enjoada e sem apetite. Bebi so coca-cola, abasteci com agua, comi batatas fritas e segui com o Paulo rumo a Loriga.

Ao longo deste ultimo troço Nave da Mestra - Torre fui tendo noticias dos Serranitos. O Xico ia bem posicionado na 4ª posição e já tinha chegado a Loriga. O Luzio tinha ficado um pouco para trás mas teve um acidente a descer a garganta de Loriga. Espetou uma raiz no tornozelo e teve de ir para o Hospital levar pontos.

Sabia que a descida até Loriga ia ser agreste. Mas tinha de ser. Foi muito difícil. Uma descida muito técnica e escorregadia. Quando as pernas já não tinham força a descida era feita com a técnica "de rabo". Estava a ficar bastante saturada de não poder correr mas ao mesmo tempo estava já em fraqueza.


Nesta descida até Loriga soube que o Xico já tinha chegado com um espectacular 3º lugar. Fiquei muito feliz mas agora tinha mesmo era de me preocupar comigo.

Quando avistei o estradão decidi que tinha de correr para tentar por as pernas a trabalhar um pouco. Perguntei ao Paulo se queria vir mas ele disse-me para seguir. Lá fui eu sempre a abrir no estradão que já conheço bem. Ainda na semana anterior tinha descido com o Xico e o Luzio. Ao fazer a descida cheia de speed acabei por gastar as minhas últimas energias a entrar em Loriga. E ao chegar ao abastecimento decido-me a ficar por lá. Não conseguia comer e as pernas estavam sem forças. Ainda tinha cerca de mais 20 Km pela frente até Seia mas sem comer nunca iria conseguir repor as forças e chegar até ao final. 

Tomei uma decisão que custou muito, especialmente porque esta prova era o meu Desafio de 2015. O calor dificultou-me a vida mas a fraqueza e a falta de apetite deixaram cair tudo por terra. No caminho para Seia no jipe da Protecção Civil a coisa bateu-me cá dentro. Quando cheguei a Seia e vi o Xico e a Cláudia a minha espera não aguentei e comecei a chorar. Não era assim que tinha planeado chegar a Seia...  Era assim, a dar um salto destes:



Infelizmente não foi possível. Mas não desisto e para o ano lá estarei novamente.

Este post demorou algum tempo a sair do forno porque tenho andado a ponderar sobre como as falhas podem ser mais interessantes que as vitorias pessoais. Falhar deitou-me abaixo e mostrou-me o quanto consigo suportar. Revelou-me a minha verdadeira força interior. A aventura que passei está na dor que senti em cada momento suado pelo caminho.

Nesse dia tomei a difícil decisão de desistir aos cerca de 50 Km na minha tentativa de concluir a prova. Custou muito mas neste momento já não me arrependo. Os trilhos e as montanhas são professores e os nossos DNF são apenas uma forma de voltar ao principio e aprender tudo outra vez... e quem sabe mais outra vez.

Não desistir de tentar significa que iremos manter o sonho vivo e voltar mais fortes, mais inteligentes e de coração aberto como bons alunos que somos dos trilhos e da montanha.

Até 2016!!